Código Penal Insiste na Discriminação de Homossexuais
O Código Penal (CP) português persiste na discriminação da orientação sexual de menores, mantendo em vigor um artigo que viola a Constituição e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
As diferenças de tratamento para adolescentes heterossexuais e homossexuais (o termo aqui empregue, apesar de redutor, engloba a homossexualidade masculina e feminina) transparece no artigo 175º do CP, que criminaliza a prática de contactos sexuais por mútuo consentimento entre menores de 18 anos e adultos do mesmo género.
O regime discriminatório revela-se na leitura dos artigos 174º e 175º. De acordo com o primeiro, pode ser punido com penas de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias quem, "sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor entre 14 e 16 anos, abusando da sua experiência"; o artigo 175º, que tem como epígrafe "actos homossexuais com adolescentes", pune também com penas de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias quem "sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem".
Apesar de esta última norma não criminalizar a homossexualidade em si mesmo, a sua interpretação e aplicação não deixam de representar argumentos discriminatórios contra os adolescentes homossexuais. Isto porque lhes impõe uma idade mais elevada do que aquela que é imposta aos menores heterossexuais para o início da sua vida sexual consensual com adultos. "Dir-se-ia que, em relação aos homossexuais, o pecado - como sombra da censura social suportando padrões morais de comportamento - não cedeu o passo à preservação da liberdade individual", escreveu Teresa Beleza no livro "Sem sombra de pecado. O repensar dos crimes sexuais na revisão do Código Penal" (1996).
A diferença da idade de consentimento legal para menores heterossexuais e homossexuais levou já a associação Opus Gay a enviar ao Ministério da Justiça um exaustivo documento que reivindica a revogação do artigo 175º. Um dos argumentos invocados pelo movimento é o estigma negativo frequentemente associado aos homossexuais.
"Mesmo admitindo-se que não foi esta a intenção do legislador ao aprovar o preceito em análise, certo é que esta possível consequência da manutenção desta incriminação constitui um efeito secundário que poderá resultar da simples necessidade de interpretar (e consequentemente aplicar) as diversas normas do ordenamento jurídico de forma sistemática e congruente, com o consequente impacto negativo daí recorrente nas vidas de inúmeros homossexuais portugueses", pode ler-se no documento.
Neste âmbito, a Opus Gay procurou explicar que a lei é inconstitucional porque criminaliza sempre as práticas homossexuais por mútuo consentimento entre um adulto e um adolescente. No caso dos actos heterossexuais, o Código Penal prevê somente um quadro punitivo na hipótese de se comprovar que o maior abusou da inexperiência do menor.
"Consentimento mútuo é que é relevante"
Entre os efeitos colaterais do artigo 175º encontra-se a mensagem subliminar da repulsa e condenação da homossexualidade, que, em alguns casos, provocam dificuldades sociais aos adolescentes homossexuais (ver texto neste destaque).
Ouvido pelo PÚBLICO, o sociólogo Pedro Vasconcelos não tem dúvidas em classificar a lei como "claramente discriminatória", alegando que "dá uma visão negativa da homossexualidade".Sublinhando que existe uma "dificuldade crescente em lidar com a sexualidade dos jovens", o sociólogo explicou que esta ideia, tida como "chocante", tende a encontrar respostas "histriónicas e histéricas". "Existe uma grande dificuldade em lidar com as relações assimétricas e a desigualdade é sempre vista como uma forma de violência", afirmou Pedro Vasconcelos, salientando que "é preciso ter sempre muito bom senso e cuidado no tratamento da vida sexual das pessoas".
A controvérsia em torno da idade de consentimento tem vindo, um pouco por todo o mundo, a acentuar clivagens entre os especialistas, nomeadamente quando se trata de definir a idade da maioridade sexual.
Américo Baptista, psicólogo clínico, defende que a identidade sexual estabelece-se na infância, manifestando-se na adolescência as preferências sexuais. Contudo, ressalvou, "o facto de as preferências aparecerem na adolescência não significa que já não estejam pré-determinadas".Director do mestrado em Sexologia na Universidade Lusófona,
Américo Baptista afirmou ao PÚBLICO que continua a prevalecer na lei uma "discriminação em relação à homossexualidade", já que o que é relevante é o "consentimento mútuo na prática sexual". "A problemática da idade já é uma questão social e ética sobre a qual os técnicos não podem dizer nada. O que é adequado tecnicamente é não existir discriminação", justificou.
Nos últimos anos, e perante a elevada quantidade de recursos que chegaram ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a União Europeia (UE) tem vindo a incrementar uma luta jurídica contra a discriminação sexual. Só muito recentemente a Roménia e o Chipre, futuros Estados-membros da UE, procederam à alteração da legislação que punia as relações homossexuais.
Maria José Oliveira
Artigo publicado no Jornal O Público, em 1 de Setembro de 2003.
http://ilga-portugal.oninet.pt/glbt/lei20030916.htm