um teste bestialFernanda Câncio - 23 de Abril de 2010Quando tive conhecimento de um teste da Faculdade de Direito de Lisboa em que se pedia a apreciação constitucional de um diploma que legalizaria, em simultâneo com o casamento das pessoas do mesmo sexo, os casamentos "entre um ser humano e um animal vertebrado doméstico" e "entre dois animais vertebrados domésticos da mesma espécie, desde que exista o consentimento dos respectivos donos", achei que só podia ser a gozar.
Não por desconhecer que o autor do teste, o catedrático Paulo Otero, defende a inconstitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo (sendo simultaneamente mandatário da plataforma que requeria um referendo sobre o assunto, o que é um tanto contraditório - mas o constitucionalista é ele). Não por nunca me ter deparado com "argumentações" que comparam o casamento de pessoas do mesmo sexo ao entre e com animais, domésticos ou selvagens. A analogia tem barbas: foi recorrente no debate a propósito do casamento inter-racial nos EUA, por exemplo (na primeira metade do século passado) e é ainda muito usada a esse respeito pelo Ku Klux Klan e quejandos.
Também não achei que o teste fosse falso por crer na impossibilidade de fundamentar juridicamente a analogia: é afinal da ideia de "aberração" que se trata, a tal subjacente às execuções, por lapidação ou outras atrocidades, quer de homossexuais quer de membros de uma seita ou de uma "raça" que casem ou pretendam casar com membros de outra seita ou "raça", coisa ainda hoje comum em várias paragens e respaldada em diversas legislações, civis e religiosas.
As leis não são outra coisa senão a manifestação de conceitos morais e a formação de um jurista também passa por tentar defender aquilo que lhe surge moralmente indefensável. Não me choca nada, pois, que um professor de Direito, quaisquer que sejam as suas ideias, solicite aos alunos que fundamentem ou refutem juridicamente analogias absurdas. Como não me choca que lhes peça para elaborarem sobre casamentos entre crianças ou entre adultos e crianças, ou sobre se o direito dos pais para decidir sobre as opções dos filhos inclui o de terem com eles comércio carnal ou oferecê-los a alguém para esse efeito, ou sobre a ética da escravatura. Por exemplo.
O que me é difícil crer é que um professor de Direito solicite aos seus alunos que busquem na Constituição portuguesa, baseada na dignidade das pessoas e num princípio de igualdade que inclui a proibição da discriminação em função da orientação sexual, o fundamento para o exercício citado. E que valorize mais a fundamentação da inconstitucionalidade do diploma (com sete valores) que a da sua constitucionalidade (cinco valores). Isso é que só pode ser brincadeira. Uma bestialidade, em suma.
http://jugular.blogs.sapo.pt/1810764.html____________________________________________________________________________________________________________________________________________
Declarações de Paulo Otero ou do "foi assim que não aconteceu"Isabel Moreira - 22 de Abril de 2010Leio as declarações de Paulo Otero e a primeira reacção que tenho é lê-las três vezes para ter a certeza de que não me está a falhar nada. Vamos por partes:
Paulo Otero faz um teste que merece a corajosa reacção de uma aluna e a minha solidariedade para com ela.
Para além do que já escrevi, convém recordar que Paulo Otero defendeu que o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria sempre inconstitucional e que havia um direito a não se ser confundido (quem tivesse um casamento com pessoa de sexo diferente) com casais homossexuais. Paulo Otero, como cidadão, pode defender o que quiser. Tal como eu. Tal como qualquer pessoa. Mas quando entra numa sala de aula, não pode confundir os conteúdos de uma disciplina, que no caso é a de direito constitucional, com o ímpeto de doutrinar alunos, o que acontece, ano após ano, como sabem todos os que passam por aquelas aulas.
Hoje está em causa um teste que é indício claríssimo disso mesmo. Nesse teste, Paulo Otero não se limita a fazer uma paródia de gosto duvidoso sobre a possibilidade de casamento entre pessoas e animais. Não: o ilustre professor faz decorrer (usa o termo "em complemento") de uma lei concreta aprovada democraticamente num Parlamento, contra as suas convicções, a poligamia, o casamento entre pessoas e animais e o casamento entre animais. Faz uma equivalência numa evidente petição de princípio. Pior: na pergunta a), que vale menos valores que a pergunta b), obriga os alunos a defenderam o impossível: a constitucionalidade daqueles casamentos.
É impossível defender-se o casamento entre pessoas e animais e entre animais, como o humorista/Professor, sabe. E faz isso para validar a sua conclusão pessoal, derrotada pelo voto, por onze votos no Tribunal constitucional, de que é tão impossível defender-se a bestialidade como o CPMS. Para Paulo Otero equivalem-se e ele, numa pergunta de resposta impossível, o que desde logo deveria ser proibido, humilha os alunos para fazer uma declaração velada. Isto é má fé. Isto é indigno. E, como já disse, é doutrinação. Com o nosso dinheiro.
É por isso mentira, sim, mentira, que os alunos pudessem ter uma linha de argumentação, com argumentos contra e a favor, como afirma, tão democraticamente, Paulo Otero. A resposta a) é impossível. Repito cem vezes se for preciso. A pergunta a) é uma manipulação velada.
Mais: Paulo Otero afirma que "ainda não estamos perante uma lei" porque ainda não foi promulgada em DR. E que as perguntas são ficção. Aqui o Professor não recua, antes sublinha o que já estava escrito no teste: o seu total desrespeito pela Assembleia da República. Quem ensina direito constitucional de verdade, sabe que não se destrata o momento solene da aprovação de uma lei, e que esse é o momento decisivo, sendo os outros, de resto, exteriores ao procedimento legislativo. Isto merece uma intervenção na AR.
Quanto à ficção, por quê a ficção se quer formar advogados, como diz Paulo Otero? Por que não apresenta a lei aos alunos e os desafia a questionarem positiva e negativamente a sua constitucionalidade? Eu percebo. A lavagem de cérebros não vai bem com a realidade e com desafios adequados à vida que os alunos têm à sua espera. A ficção, e este tipo de ficção dirigida, é tão mais funcional, não é?
Calhou que alunos sem preparação nem maturidade para dissertarem sobre direitos fundamentais tivessem dado uma lição ao Professor. Acontece.
http://jugular.blogs.sapo.pt/1808510.html
Nota da moderação: Informamos que todas as respostas a este tema devem ser dadas no tópico 'Homofobia nas Universidades Portuguesas', por se enquadrar melhor dentro deste. Obrigado pela atenção.