Diferenças sociais? Se queres com isso dizer perspectivas de vida diferentes e diferentes objetivos, etc, concordo, se falas em classes sociais nao, ate porque nenhuma delas era rica ou pobre, andavam pela classe media, por isso nao foi isso que as separou. Alem do mais, o peso da homossexualidade e muito mais pesado que diferenças de classe social, que hoje em dia ja pouca gente liga a isso, penso eu.
Se atentares ao filme, denotas que Adèle come rapidamente, limpa-se com as mãos, e come sempre comidas mais simples e comuns entre a classe média (como é o caso do esparguete à bolonhesa). Na refeição de Adèle, os pais não conversavam sobre nenhum tópico, limitavam-se a ver televisão. Existe até o diálogo em que Emma vai jantar com a família de Adèle e os pais dela comentam que a profissão que Emma tem não lhe dá empregabilidade ou, pelo menos, eles não a vêem dessa forma. Comentam até que uma mulher precisa de um homem para conseguir ter uma vida estável. (É triste admiti-lo - e não quero estar a ser preconceituosa - mas concordo com a abordagem de Kechiche: este pensamento é recorrente nos estratos socioeconómicos mais baixos.)
Por outro lado, os pais de Emma eram separados, a mãe dela já tinha um segundo companheiro e faziam-se servir de ostras e um bom vinho para o jantar (os típicos hábitos mais
excêntricos e extravagantes das classes socioeconómicas mais altas). Adèle não sabia, contudo, apreciar esses hábitos, uma vez que nunca os tivera. E a própria disparidade entre as cenas, quando Adèle jantou com os pais de Emma, estes questionaram-na sobre a profissão dela. E, na perspectiva da família de Emma, ser educadora de infância é uma profissão de classes médias/baixas. Estes tinham discursos mais intelectuais e cultos, sobre pintura e filosofia, e não conseguiam explorar muito mais temas sobre as ambições de Adèle.
O próprio circulo de amigos de Emma era, todo ele, intelectual. Havia um casal de lésbicas que estava a tirar um doutoramento sobre o trabalho de um pintor, se não me engano. Segundo a perspectiva da classe média, estudar e pensar é
para quem não têm mais nada para fazer da vida, nem todas as famílias se dão ao luxo de terem filhos a tirar doutoramentos, uma vez que um doutoramento têm custos elevados e não possibilitam lucro directo, como aconteceria caso exercessem uma profissão mais
prática. Emma estudava
Belas Artes, um curso que, como sabem, não tem uma taxa de empregabilidade de causar inveja, e que ela gostava de estudar porque lhe dava prazer aprender aquela área. Adèle optou por um curso mais prático, que lhe permitisse trabalhar rapidamente e ganhar dinheiro, embora fosse o que gostasse, pois foi educada para tal.
Havia uma enorme disparidade entre ambas as personagens. Na festa de Emma, Adèle era como uma empregada para Emma: organizou toda a festa, servia os amigos de Emma e não tinha assunto/interesse para participar nas discussões intelectuais daquele grupo. A meu ver, Emma tinha Adèle como sua musa (o que acontecia muito na Antiguidade com os pensadores de estratos mais altos), enquanto que Adèle procurava
servir Emma (o que lhe foi educado pelo meio onde estava inserida -
uma mulher tem de ajudar e servir o seu marido, pois é este quem lhe possibilita uma vida melhor).
No entanto, esta é uma das muitas interpretações que existem por aí, sobre o filme. Eu acho que este foi grandiosamente pensado e realizado, no que diz respeito aos pequenos pormenores, que revelam essa tal
disparidade. A homossexualidade, em nada alteraria o desenrolar da história. Se fossem personagens heterossexuais, teria o mesmo desfecho, porque o foco do filme era esse mesmo:
mostrar que o meio onde estamos inseridos condiciona (e muito!) as relações que (man)temos com as pessoas provenientes de estirpes opostas à nossa.
Daí eu o ter como um grande filme. Não por ser lésbico, mas porque me deixa perplexa com a realidade que observo. É um filme que me ficou, durante semanas, na cabeça e que me
gela de cada vez que penso nele, não pelas cenas sexuais explícitas, mas devido a esses pequenos pormenores (à tragédia, efemeridade e fragilidade do/no
amor).