Rui, que já não tem contas a esgrimir com o passado, ao ouvir a sentença do puto arregala os olhos como se de repente tivesse sido empurrado sem passar por vestíbulos ou corredores para um alçapão sem um raio de luz. Era um nada mais velho do que Bruno quando percebeu que era diferente. Vinha de uma família da classe média e crescera até então sem sobressaltos. Estudara em colégios internos, namoriscou como qualquer adolescente. Mas com as raparigas nunca teve grandes esbanjamentos de coração. Foi no Externato Solense, onde fazia o liceu, que sentiu na carne pela primeira vez as alfinetadas da paixão. O homem que geria o bar despertou-lhe sentimentos com os quais não sabia lidar: uma atracção enorme por ele, uma repulsa medonha por si próprio. E, enquanto os colegas seguiam despreocupados o seu destino, ele experimentava o inferno. Os preceitos da Igreja Católica, em que tinha sido criado, abateram-se sobre o seu espírito sem piedade. Mas nem os ditames do Evangelho conseguiam travar os seus impulsos amorosos. Os ponteiros do coração pareciam os de um relógio escangalhado. Umas vezes enfiava-se no bar e, como qualquer jovem apaixonado, fazia tudo para prender a atenção do outro; outras ouvia uma voz sinistra que o enregelava: «Tens de ser homem!». Rezou, pediu a Deus que invertesse o rumo do seu destino: «Achava que o que se passava comigo não era normal, mas mesmo assim só pensava em estar ao lado dele, tocar-lhe. Quando não estava com ele sentia-me vazio».
Tinha 15 anos e experimentava a primeira rejeição amorosa. E o pior ainda era ter de viver esse desconsolo em silêncio, como se transportasse com ele a peçonha que arrasta o fim do Mundo: «Só me apetecia gritar, contar aos meus amigos e à família o que sentia, mas como é que eu podia dizer que estava apaixonado por um homem?». Não foi preciso, era um adolescente incapaz de exercer a dissimulação. Foi o homem que geria o bar quem se apercebeu da inclinação do rapaz. Era casado, tinha filhos, e decidiu falar abertamente com ele: «Falou comigo, disse-me que tínhamos de nos afastar, que eu era um miúdo ainda muito confuso e que aquilo me ia passar».
Mas não passava, apesar de Rui se retrair como um caracol com o peso da vergonha. Até que um dia enfrentou a voz que, com uma indulgência fingida, lhe assegurava: «És homem». E era, mas diferente. Tapou os ouvidos e trocou as voltas ao fantasma que se intrometia na sua vida. Arranjou a escapadela possível e na noite, em bares gay, voltou a sentir que fazia parte da espécie. Foi aí também, ao ver um espectáculo de travestis, que descobriu a sua vocação. «Primeiro achei um bocado estranho: por que é que os homens se vestiam de mulheres?». Depois do pasmo veio o fascínio. Todas as noites estava lá caído, sem dúvida que ali era o seu lugar e queria entrar naquele faz-de-conta. Poder rir e chorar sem o medo de recriminações. «Aquilo era como um conto da Cinderela, aquelas roupas, as luzes, os artistas deslumbravam-me. E decidi: é isto que vou fazer». Começa a conhecer artistas ligados ao meio e consegue a sua primeira audição: «Mas foi um fracasso».
Parecia que nada batia certo, não tinha concerto com o mundo. Uma noite, está a dançar no Xeque-Mate, e sente que alguém o observa. Parou, petrificado, ao reparar no homem mais velho, bem vestido, bigode a fazer sombra aos lábios bem desenhados, que o fitava. Os olhares dos dois pegaram-se. Rui continuou na pista e dançou para ele: «Foi amor à primeira vista, o mundo parou quando o vi». As peripécias da vida, que transportam sempre mel e vinagre, chamavam-nos. O homem ofereceu-lhe um copo. José Luís, mais velho dez anos, transmitia-lhe confiança e, levados por um impulso amoroso, trocam as histórias das suas vidas. Forma tradicional de se começar um romance.
Na manhã seguinte, Rui acordou como tinha adormecido: pensava em José Luís. E vice-versa. «Lembras-te?», pergunta Zé Luís com o olhar pregado ao dele, como se segurasse um quadro que emoldurou uma paixão que os outros amores nunca desalojaram. Como é que Rui pode esquecer? Tinha 16 anos: «Até aí, a minha experiência não tinha ultrapassado uns beijos, umas carícias com ele, eu queria ir mais longe». E foram. Estavam destinados a entender-se. José Luís estava com 26 anos, era «designer» e queria assentar. Entrara na vida do rapaz de supetão, disposto a todos os riscos. Uma noite, num jantar romântico em sua casa, surpreende-o. Rui abre o presente: «Eram umas chaves com um cartão que dizia: ‘Seja feliz na sua nova casa’». Depois de se entregarem às incandescências da carne, o silêncio caiu entre os dois. Rui sentia uma grande aflição: «Como é que eu ia dizer à minha família que ia viver com um homem?». José Luís, que se tinha libertado há muito da mentira e assumira a sua homossexualidade, não estava disposto a reviver demónios antigos. Propunha-lhe caminhar ao seu lado, a direito. As recordações do passado ainda pairavam nele como brasas atiçadas para lhe vedarem o caminho da felicidade.