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O medoÉ esta interpretação de "desvio" à ordem do salazarismo que leva a que a maioria dos homossexuais que caem nas malhas da polícia sejam internados, espancados e humilhados. Por isso, o medo da denúncia é uma constante até 1982, quando ser homossexual deixa de ser crime em Portugal. "Havia uma vigia constante em cima das pessoas, tínhamos medo desde a PIDE à vizinha do lado. Se uma vizinha não gostava de nós, denunciava-nos; as pessoas denunciavam para satisfazer ódios. Houve casos extremos, sei de uma actriz portuguesa que foi à polícia denunciar o filho", garante o artista plástico Óscar Alves, hoje com 74 anos.
O medo tinha razões reais, como a chantagem. "Se a polícia aparecia e prendia, pagava-se e o processo desaparecia", lembra Serzedelo, que concretiza: "Havia dois tipos de chantagem: a dos processos não avançarem e, para o povo, havia a pressão do Pisão, da Mitra e da cadeia, ou então aceitavam ser humilhados e escravos sexuais da polícia."
A chantagem policial era uma realidade constante e os homossexuais ouvidos pela Pública, que eram jovens no Estado Novo e pediram para não ser identificados, contam que era praticada até sobre a elite, como aconteceu com João Villaret e Leitão de Barros.
"Ser homossexual declarado era impossível nos anos 50", garante Óscar Alves, porque "os homens eram perseguidos pela polícia e identificados". Autor da tese de mestrado Do Acto à Identidade: Orientação Sexual e Estruturação Social, Octávio Gameiro refere que Mário Cesariny foi várias vezes preso em rusgas a urinóis e sujeito a humilhações da polícia. Também Yolanda Gonçalves, professora universitária reformada e co-fundadora da Ilga, relata que o seu tio, Mário Gonçalves, bailarino do Verde Gaio, foi preso. "Muitas vezes foi apanhado nas casas de banho públicas dos jardins, onde os agentes à paisana fingiam andar no engate."
A polícia "aparecia de repente e chateava e prendia", relembra Óscar Alves, dando como exemplo as "festas em casas particulares", onde, quando a polícia entrava, iam todos presos. "Era fatal."
Este medo condicionava comportamentos.
"A repressão e a auto-repressão" impediam os homossexuais que "tinham relações de noite de se cumprimentarem quando se cruzavam na rua de dia", conta Serzedelo.
A excepção era a elite da sociedade de Lisboa e do Porto. O ex-corredor de automóveis Nicha Cabral, 75 anos, declara: "Nunca senti que fosse incomodado pela polícia. Eu achava que era normal o que fazia... homossexualidade, bissexualidade, nunca achei que fosse desvio, vivi sempre num meio não homossexual. Tinha um grande amigo, o actor Paulo Renato, um homem superiormente inteligente, que pensava exactamente como eu e que eu saiba ele não se sentia perseguido."
O caso BurnayMas a aparente liberdade em que se movia a elite social não dava aos homossexuais direitos. O caso de Carlos Burnay, de 24 anos, membro de uma das famílias influentes da época, ficou como um símbolo da discriminação do Estado Novo. Por mais que Ana Maria Burnay movesse influências, o assassino do seu filho Carlos nunca foi encontrado - no auto de ocorrências, a polícia escreve claramente que Carlos Burnay era homossexual e dava festas para homossexuais.
Óscar Alves recorda o clima que se instalou após Burnay aparecer morto com um tiro de pistola na cabeça, na manhã seguinte a ter dado uma festa numa das casas que a sua mãe tinha em Cascais. "Fui convidado mas não fui ao baile do Carlos Burnay, ele dava festas com homossexuais. O assassínio dele deu muito que falar e nunca se descobriu. Eu estava no [teatro] Monumental e o Rogério Paulo foi convidado e foi. Com medo do escândalo, casou à pressa. Ele não era homossexual, mas com medo casou com a rapariga com quem estava."
Se o medo dos homens era assim, na sociedade patriarcal portuguesa o medo das mulheres era ainda maior. Óscar Alves explica que, mesmo na elite, as mulheres, que se soubesse, eram poucas.
"Havia a Natália [Correia], as histórias dela eram com mulheres, havia umas grandes amigas dela que conheci naqueles anos 60", recorda. "Outra mulher assumidíssima era a Maluda, que tinha uma grande amizade com a Amália, mas a Amália não era." Acrescentando: "Havia a Luzia Maria Martins e a Helena Félix, que eram conhecidas, e a Irene Isidro, que fazia aqueles travestis. A mim disse-me ela muitas vezes: 'Tenho medo'."
Numa entrevista feita sob pseudónimo e publicada no n.º 3 da revista Lilás, em 1993, uma mulher identificada como Peres relata: "Nos anos 50, era tudo à socapa, íamos de carro dar umas voltas por aqui e ali. Havia festas particulares." Já Marita Ferreira, autora do blogue Tangas Lésbicas e co-fundadora da Ilga, explica que, mesmo nos anos 70, o desporto era uma forma de as mulheres assumirem e viverem o lesbianismo sem serem incomodadas: "Praticar desporto era uma forma de poder ter relações com raparigas e dormir no mesmo quarto."
A discriminação das lésbicas era tal que, muitas vezes, eram os próprios homossexuais homens a fazerem-na. "Havia discriminação" e "as duas comunidades, gay e lésbica, não se cruzavam. As mulheres eram recatadas", diz Serzedelo.
"E, embora houvesse uma ou outra que era presa por denúncia, eram raras."
Espaços públicosEste era o mundo privado dos homossexuais durante o Estado Novo. Mas também havia um público. Os lugares de encontro foram evoluindo ao longo das décadas. Inicialmente, frisa Cascais, "não havia bares para homossexuais, as pessoas encontravam-se clandestinamente em espaços públicos".
Óscar Alves lembra que sempre houve festas particulares até ao 25 de Abril de 1974 e destaca que quando chegou a Lisboa, vindo do Porto, no início dos anos 50, "ia às festas de um senhor de alta sociedade, Ayres Pinto da Cunha, que às quintas-feiras recebia homossexuais e artistas".
Além do mundo dos salões da classe alta, os intelectuais começaram nos anos 60 a viver a sua homossexualidade com mais naturalidade. Mas mesmo nos grupos mais libertários havia diferenças de atitude, salienta. "No grupo surrealista, havia uns que não queriam que se soubesse, mas havia também o Cesariny que era assumidíssimo, dentro do que podia ser na época." Óscar Alves serve-se precisamente da figura de Cesariny para explicar a diversidade da época. "O Cesariny não se dava com intelectuais, não gostava, gostava de se dar com pessoas do povo. Havia um grupo, em que o Cesariny andava, que gostava de marinheiros e não aparecia nos locais onde os outros intelectuais se juntavam. O Cesariny estava sempre na Reimar, que era mais povo e mais bas-fond."
Era na Cervejaria Reimar, na Rua do Telhal, em Lisboa, conta Serzedelo, que se juntavam figuras como "o Cesariny e o Ary" e "onde se misturava a elite e o povo homossexual". E era um lugar onde "havia liberdade de se sentarem ao colo e fazerem carícias".
Em Lisboa, os cafés Monte Carlo e Monumental, o Tony dos Bifes, "a Pastelaria Paraíso, na Avenida Alexandre Herculano, onde parava o escritor Bernardo Santareno", a Suíça e a Brasileira no Chiado são locais de encontro de homossexuais, segundo Serzedelo e Óscar Alves.
Já no Porto, "não havia nada", garante Óscar Alves, que conta como era ser homossexual no Porto, no final dos anos 40. "Eu trabalhava no Teatro Experimental do Porto com o António Pedro, que não era homossexual, e o Vasco de Lima Couto. Íamos ao Café Rialto, na Sá da Bandeira. Eu, enquanto estive no Porto, tomava todos os dias café com o Pedro Homem de Mello e com o Vasco de Lima Couto. Eles eram assumidos, toda a gente no Porto sabia, mas não se falava."
Este artista plástico salienta o ambiente fechado da sociedade portuense na época: "A única pessoa que tinha coragem de não se retirar se lhe atirassem alguma boca era o Eugénio de Andrade. No Pedro Homem de Mello também não se atreviam a tocar. O Vasco de Lima Couto sofria muito, mas também não se poupava. Era difícil. Por isso fugi para Lisboa em 1952, para a aviação militar."
Quanto a lugares de encontro nocturno no Porto, Óscar Alves diz que só havia o Jardim da Cordoaria e o Castelo do Queijo. Já em Coimbra, o local de engate, segundo Serzedelo, era o Jardim da Sereia. E em Lisboa havia variados jardins e locais públicos. "Os grandes centros de encontro eram os urinóis, as estações de caminho-de-ferro, os jardins, os cais de desembarque da outra margem, o Cais do Sodré, onde chegavam os marinheiros do Alfeite", conta Serzedelo. "Os senhores estavam lá com bons carros. O vocabulário era dissimulado. Dizíamos 'as gaivotas' para os marinheiros e 'as doroteias' para os soldados."
Quanto aos urinóis, "os dois principais eram o do Campo das Cebolas e o do Campo Pequeno", em Lisboa, conta Serzedelo, referindo ainda que, à época, "os jardins eram seguros em relação à polícia e não tinham prostituição". O Parque Eduardo VII era frequentado para encontros, uma das formas, naqueles anos, de um homossexual conhecer outro. "A zona da Estufa Fria era onde ia, por exemplo, o [maestro] Lopes Graça", lembra Serzedelo. "O Campo Grande era outro jardim frequentado por causa dos estudantes das universidades de dia e de um quartel que havia ali, à noite." E Belém, zona de quartéis e onde "havia muito engate de carro".
Locais de engateÉ num contexto de encontros de rua sujeitos à violência da polícia que surge, em Lisboa, o Bar Z, no Príncipe Real, onde hoje é o Harry's. Este bar, conta Serzedelo, "foi montado por um administrador da Carris, que era inglês e tinha um amante chamado Zé (daí o Z), para ele se encontrar com os seus amigos, longe da polícia.
Ao princípio era um clube fechado. O porteiro, o Armando, acabou por abrir muito mais tarde, depois do 25 de Abril, o Finalmente".
Na ausência de lugares exclusivos, os homossexuais frequentavam os lugares da moda. Assim, além das casas de fado, Óscar Alves e Serzedelo lembram locais como a boîte da aristocracia, o Ad-Lib, ou o menos aristocrático Galo no Parque Mayer, o Barbarella, ao fundo da Rua da Atalaia, o Insólito, o Antiquário, no Príncipe Real, o Memorial, que abriu e fechou sob os nomes de Gato Verde e Gato Preto, e que foi o primeiro bar a fazer matinés para lésbicas. Até que José Filipe Vilhena abre o Bric à Bar, um dos lugares míticos dos roteiros da noite homossexual do final do Estado Novo, diz António Serzedelo, acrescentando que este bar "teve a primeira mulher porteira que ficou famosa em Lisboa, a Emília".
Muito famoso, no início dos anos 70, e dirigido a um público homossexual mais jovem, foi o Marygold, na Rua do Sol ao Rato, talvez o local que mais rusgas da polícia sofreu pela quantidade de denúncias que eram feitas. Muitas das testemunhas ouvidas pela Pública contam que as denúncias eram motivadas pela desconfiança de que ali iam homossexuais para se prostituírem e consumirem droga. Esta associação entre homossexualidade e drogas surge já no marcelismo e foi o início do crescendo de consumo de droga que explodiu já nos anos 1980.
Quanto a restaurantes, o primeiro assumidamente homossexual em Portugal foi a Baiúka, no Bairro Alto. O Alfaia era muito frequentado por lésbicas.
Lugares de encontro eram também as praias da Costa da Caparica. Octávio Gameiro explica que, quando não havia sequer ponte sobre o Tejo, a Costa dava segurança contra a polícia.
Serzedelo especifica que o local de eleição na Caparica era a praia do Castelo, hoje praia 14.
Nas universidades, só políticaFruto da guerra colonial e das ideias que vinham de fora, a sociedade portuguesa foi ganhando hábitos mais liberais e isso reflectiu-se na vivência da sexualidade. "Há um mundo libertário dos anos 60 e um movimento de reivindicação homossexual que entra em Portugal através de uma elite que tinha acesso ao que vinha de fora", defende Cascais. Mas este investigador esclarece que esta abertura, que "entronca com a liberdade social que se viveu na Primavera Marcelista, existia só na alta sociedade, em alguma classe média nascente e nos meios artísticos e intelectuais". As rusgas continuavam, mas "as pessoas não ficavam presas".
A maior liberdade não tem eco na universidade. A professora universitária reformada Yolanda Gonçalves conta a sua experiência de aluna. "Na faculdade, para onde entrei em 1964, a luta académica dominava toda a cena. A mentalidade em Letras era de um conservadorismo atroz", explica, precisando que se falava de homossexualidade mas "retrospectivamente" - de casos da reitora anterior, Vírginia Rau. "Era tudo muito abafado, muito às escondidas, porque a infiltração dos esbirros da PIDE estava no auge." Acrescenta ainda que em Letras "a homossexualidade masculina continuava a ser mais visível".
Cascais sustenta que "os estudantes universitários recebem a luta política, mas não bebem a luta pelos direitos das mulheres e dos homossexuais".
É esta separação que, segundo António Cascais, está por detrás do facto de, "após o 25 de Abril, a sociedade portuguesa manter os padrões de homofobia". E explica: "É que as elites que formaram os partidos vinham de universidades e de uma formação política que não incluía a defesa dos direitos das minorias, ao contrário do que se passou em Espanha, que viu nascer movimentos gay ligados aos partidos logo após o fim do franquismo." (Em Espanha, o Estado está a revisitar as perseguições aos homossexuais e estão a ser concedidas as primeiras indemnizações.)
Assim, e em termos de vivência da homossexualidade, 1974 não trouxe liberdade. O Movimento de Acção dos Homossexuais Revolucionários (MAHR) morreu logo depois de publicar nos jornais o seu manifesto. Esse foi o primeiro documento de defesa de direitos dos homossexuais em Portugal e provocou a ira de um membro da Junta de Salvação Nacional, o general Galvão de Melo, que foi à televisão dizer que a revolução não se tinha feito para "prostitutas" e "homossexuais".
Mas na sua breve vida, ainda organizou uma manifestação no Porto, junto aos Clérigos, que os jornais noticiaram como tendo mil manifestantes, mas que na prática teve "998 mirones a verem os dois 'p*********'", conta Serzedelo, lembrando uma piada feita por um elemento do grupo sobre aquele dia.
Já o lesbianismo não teve direito a nada. Mesmo o Movimento de Libertação das Mulheres, que integrava várias lésbicas, nunca assumiu esta luta e a sua radicalidade foi apenas a da defesa do feminismo.
Só nos anos 1980 surge o que muitos homossexuais e estudiosos caracterizam de "democratização" ou de "proletarização" da homossexualidade. Uma viragem que Cascais assinala simbolicamente com a morte do cantor António Variações, a 13 de Junho de 1984: "Naquele dia, na Basílica da Estrela, percebi que havia um mundo que tinha morrido. Nada ia ser igual."
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