Olá,
Desculpem-me para já abusar do vosso forum. Infelizmente já não sou jovem — tenho 41 anos — e por isso não vos deveria estar a importunar com as minhas perguntas! Mas reparei que pelo menos aqui na Rede Ex Aequo há muita informação preciosa, e uma certa facilidade de comunicação (para além do relativo anonimato!), que faltam aos (poucos) forums supostamente "adultos" que são, com poucas excepções, mais para "engates" do que qualquer outra coisa...
Segue, pois, a minha dúvida. Sou uma crossdresser caseira — quero com isto dizer que sou um indivíduo fisicamente do sexo masculino mas que sinto uma necessidade fundamental de me vestir de mulher. Sou heterossexual, mesmo quando travestida; apenas desejo ver a minha imagem feminina, não tenho qualquer interesse sexual por homens (curiosamente, a maior parte das crossdressers portuguesas é homossexual, pelo menos latente, ou bissexual; no estrangeiro passa-se precisamente o contrário).
Faço, pois, parte da pequena comunidade transgénero que é das que menos protecção legal têm. Há razões para isso: somos poucas (comparadas com o resto da população não-heterossexual) e escondidas (não aparecemos em público, logo, pouca gente sabe que existimos). E isto, no outro dia, ao conversar com a minha mulher (a única pessoa em Portugal que sabe que sou crossdresser e me aceita plenamente como tal), levantou-me uma dúvida.
Em Portugal, ninguém pode invadir a nossa privacidade sem um mandato. O que fazemos em casa (e, em certa medida, no interior do carro, que também é propriedade privada) não pode ser violado por ninguém, nem mesmo pelo Estado. Significa isto que não há problema algum em estar vestida de mulher dentro da minha própria casa ou em casas de outras pessoas que me autorizem fazê-lo (não, ainda não aconteceu). Idem para espaços privados cujos proprietários assim o autorizem: ao contrário do que se passa lá fora, não há bares, restaurantes, hotéis, ou associações (com instalações próprias) para crossdressers, mas alguns bares gay têm abertura de espírito para nos deixarem entrar (são poucos, mas existem).
Só muito recentemente é que comecei a ganhar coragem para saír de casa — sempre sozinha, sempre por períodos de tempo curtíssimos, e praticamente sem saír do carro. Mas a dada altura a minha mulher, que é uma pessoa naturalmente ansiosa, lembrou-se, e muito bem, da questão legal — e isso deixou-me preocupada, pois não lhe consegui responder.
Em Portugal, nos espaços públicos, a Polícia tem o direito de nos pedir a identificação (uma reminescência do Estado Novo...). Ora imaginem uma operação de auto-stop em que sou "apanhada" a conduzir vestida de mulher. Legalmente, enquanto estou no meu carro, não há problema algum. Mas ao mostrar a minha identificação, o agente pode concluir, e provavelmente com razão, de que não sou muito parecida com os documentos que apresento. Pode, pois, alegar que estou disfarçada para encobrir a minha identidade. Mesmo que me voluntarize para me desmaquilhar e remover a cabeleira, auxiliando assim na identificação, o agente poderia sempre alegar (julgo eu) de que até ao momento de ser detida estava a encobrir a minha identidade. Isto será um crime?
Pensem no seguinte exemplo (extremo!): ao conduzir tenho um acidente, bato noutro carro (ou mesmo atropelo uma pessoa!) e fujo. Quem observar a cena vai descrever "uma mulher a conduzir aquele carro". Se tivesse uma intenção criminosa, poderia mesmo fazer uma participação à Polícia de roubo do carro, pegar em toda a minha roupinha, e queimar tudo. Mesmo que houvessem câmaras de vídeo-vigilância no local, mostravam apenas "uma mulher"... que na realidade não existe em lado nenhum. E mesmo que recuperassem o carro e fizessem análises ao DNA e tirassem impressões digitais, só descobririam as minhas, o que seria mais que óbvio, visto que o carro é meu... portanto, nunca seria descoberta. Isso é, penso eu, obstrução à justiça — estaria a prejudicar o trabalho da Polícia pelo facto de andar vestida como mulher. Portanto a minha pergunta é se andar vestida de mulher será proibido por lei.
Em Espanha, por exemplo, a argumentação da "dificuldade de identificação em espaços públicos" está a ser usada para proibir a utilização da burka islâmica, pois é conhecido que os terroristas da ETA (de ambos os sexos) usam frequentemente burkas para não serem reconhecidos em público. Penso que foi esta notícia que levou a minha mulher a pensar se por cá não se passará o mesmo, ou seja, que a escolha de vestuário que dificulte a acção de identificação por parte da Polícia não seja igualmente proibida por lei (e eventualmente que seja considerado mesmo um crime de obstrução à justiça).
Mas também posso dar o exemplo contrário. Se deixar crescer a barba (como já fiz) e rapar o cabelo (como praticamente fiz durante o serviço militar obrigatório), e usar um estilo de roupa completamente diferente, seria também praticamente impossível reconhecerem-me em público. Ora nada impede uma pessoa de mudar o seu estilo de vestuário, mesmo de forma radical, pois há liberdade de expressão — desde que o vestuário em si não seja ofensivo (por exemplo, não se pode andar nu na rua, e mesmo entrar num restaurante de luxo em bikini ou calções não é permitido). Mas mudar de estilo de roupa e de aparência não é um crime. Mesmo fazendo umas operações plásticas, mudar a côr dos olhos com umas lentes de contacto, e assim por diante, não é, de todo, um crime. Não é obstrucção à justiça. Se realmente de facto dificultar a identificação por parte da Polícia, azar... em Portugal, pelo menos, não nos podem "obrigar" a vestirmo-nos da forma que seja mais conveniente para a Polícia!
Desde que o façamos com roupa associada ao género com que estamos identificados no BI.
Bom... também já não será tanto assim. Vamos pensar no exemplo absolutamente oposto: uma mulher que corte o cabelo bem curto ou com um corte claramente masculino, que vista uma simples T-shirt e umas jeans, e que não use nenhum adorno que a identifique como mulher... pode perfeitamente saír à rua e andar por todo o lado sem problemas. É irrelevante se é classificada como "homem" ou "mulher" por quem a observe (incluindo a Polícia). Tem total liberdade de escolha do estilo e aspecto com que se apresenta em público e esta questão não se coloca sequer.
Já um homem que se vista de mulher pode levantar essas questões todas!
Algumas crossdressers com as quais conversei na 'net disseram que nunca tinham tido qualquer problema em operações de auto-stop. No pior dos casos, aconteceu que o agente lhes pedisse para se desmaquilharem. Sempre foram corteses e respeitadores e não fizeram qualquer espécie de comentários. No entanto, uma coisa é confiar num agente simpático e tolerante (tenho alguns na minha lista do MSN!); a outra é ter a consciência se estamos ou não a violar alguma lei, e temos de depender da "boa vontade" do agente para nos "facilitar" a situação...
Por isso gostava de saber se entre os leitores deste forum se encontra algum jurista que tenha alguma experiência (ou que até faça parte da comunidade!) e que se possa pronunciar sobre o assunto, de preferência com referências legais para justificar a sua argumentação. Confesso que li bastante do Código Penal, mas nada lá diz a este respeito — no entanto, tenho perfeita consciência que a argumentação de um jurista requer o acesso a milhentas fontes de informação, muitas delas obscuras e inacessíveis ao público não especializado, e que só através de algum trabalho profissional se consegue chegar à argumentação final.
Será que alguém me sabe responder e justificar juridicamente a resposta?
Muito obrigada pela atenção!