Sobre tudo o que foi escrito nos últimos posts, gostaria de introduzir algumas informações (e depois fazer alguns comentários):
1. A não aceitação da sua própria homossexualidade existe referida no manual da OMS como "homossexualidade egodistónica". Por isso não é preciso X, há nome e descrição e... tratamento.

Ou seja, o que actualmente qualquer psicoterapeuta que cumpra a deontologia faz é trabalhar para que a pessoa homossexual que não se aceita consiga fazê-lo e, em simultâneo, para que consiga ter ferramentas para lidar com a discriminação, preconceito e ideias negativas no seu ambiente social (restrito e alargado);
2. Há noções do género essencialistas, que passam a noção que existe de facto características psicológicas inatas e inerentes ao sexo com que as pessoas nascem e que se o respectivo sexo não corresponder significa potencialmente que se deveria então mudar o sexo. O que género em ciências sociais, inclusive na psicologia, significa não é isso, mas outra coisa. Pelo contrário o género é reconhecido como a construção social (significados, ideias, papéis, características) feita à volta do sexo das pessoas e que varia conforme a época, cultura/território, etc. Convido a ler detalhadamente a literatura existente sobre o tema. A tentativa de essencializar o que é psicologicamente um homem e uma mulher é algo já trabalhado e desmontado há anos, nomeadamente pelos investigadores na área dos estudos de género.
Não é dizer que homens e mulheres não têm diferenças nenhumas entre si, mas que na realidade não são assim tantas, que o que é cultura e biologia não está assim tão bem destrinçado, e que o que descobrimos é que a psicologia é mais humana, do que feminina ou masculina, encontrando exemplos de tudo em ambos os sexos.
O que não invalida que, numa determinada cultura, a expressão de género de uma pessoa destoe com as convenções de género vigentes e essa pessoa possa querer mudar o aspecto do seu corpo para então não destoar tanto ou nada. Mas a expressão de género destoar não obriga a que uma pessoa queira mudar de corpo nem é uma coisa que lhe é inerente. Já vi/ouvi de facto transexuais que dizem que a sua questão é estritamente relacionada com o seu corpo (que dizem que deveriam ter outro), outros que passa pela necessidade da sua expressão e identidade de género ter correspondência no corpo.
A questão que se colocou aqui - não tanto se é doença ou não - mas se há uma rejeição do corpo e se essa rejeição tem de facto existir é muito interessante. E tudo pode depender se de facto as pessoas estão a ceder a uma noção rígida que diz em que corpo deve existir determinada expressão de género, achando que a sua expressão de género implica necessariamente para além de x corpo também x identidade de género, ou se de facto, com as diferenças no cérebro que têm sido estudadas nas pessoas transexuais (os cérebros aparentemente são mais parecidos com os das pessoas do sexo com qual dizem se identificar) existe uma noção ou sentimento inato de que este não deveria ser o corpo que se deveria ter.
Porque a identidade... isso é construído a partir do discurso sobre matéria, tal como é um corpo ou a partir de práticas, gostos ou sentimentos. Se me identificar como morena é provavelmente porque tenho fisicamente essa aparência (também posso mudar algumas coisas, como a cor do cabelo ou cor dos olhos artificialmente, mas mais dificilmente o tom da pele, embora também seja possível). Se me identificar como feminista, se calhar é porque de alguma forma pratico, acredito ou apoio um ou vários pressupostos do feminismo (por exemplo, a igualdade entre homens e mulheres). Se me identificar como mulher é provavelmente porque tenho classicamente uma biologia correspondente à categoria. Se me considerar mulher só por aspectos psicológicos que são tidos como de mulher se calhar entro num terreno mais pantanoso, porque as mulheres não são todas iguais... e existe sim um estereótipo do que é suposto ser uma mulher. Seria por via desse estereótipo? Existe algo chamado de identidade de género, também... que passa classicamente pela identidade oriunda do sexo que a pessoa tem (e nalguns casos pela psicologia da pessoa - as chamadas feminilidades e masculinidades - "sou tão delicada, tão feminina, tão mulher" ou "sou tão cheio de força e energia, tão masculino, tão homem") ... mas... não posso ter uma expressão de género "classicamente" masculina (o que inclui psicologicamente ter características tidas como "masculinas") e uma identidade de género feminina? Então a identidade de género tem de passar assim tanto pelo corpo ou expressão/maneira de ser que temos? De onde deriva essa identidade de género que faz alguém dizer "eu sou mulher" ou "eu sou homem"? Se a questão tem só a ver com o corpo porque falamos de (identidade de) género? Fica em aberto a questão.
Quando se puxa então este tema para a homossexualidade, falando da minha experiência, poderia ter um homem à minha frente com todas as características da minha mulher (e já tive alguns parecidos à frente), e isso não mudaria nada, nunca mudou nada até hoje, no que diz respeito ao que sinto. Por isso o corpo da pessoa, a química/feromonas inerentes a esse facto fazem diferença. Pelo menos para mim. Para a orientação sexual, pelo menos para a heterossexual e homossexual - para a bissexualidade isso não se colocaria -, creio, o corpo/sexo da pessoa conta, sem que tenhamos grande controle sobre isso. E só depois vem o feitio, o tipo de personalidade, a psicologia da pessoa... e há de tudo. Isso posso dizer com alguma segurança. E é por isso que falo de que por vezes acontece o contrário, posso ter encontrado homens com personalidades, psicologias e feitios óptimos, que se assemelham ao que gosto numa pessoa, e não será daí que sentirei algo mais por eles... e infelizmente só porque são homens (como seria com uma pessoa intersexual, fica em aberto!).

Por fim nada disto põe em causa que se deva respeitar sempre as pessoas e a sua identidade e que se faça para que sejam felizes e para que não sejam discriminadas.