Meninos nas escolas têm o direito a ser tratados como meninos
Hoje, dia 15 de outubro, o Nascer do SOL publicou na sua edição impressa e online um artigo escrito por José Miguel Pires "Meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos", com direito a comentários alarmistas sobre pessoas trans.
A notícia publicada aborda questões sobre uma temática sensível, a identidade de género e pessoas trans. Recordamos que a proteção contra a discriminação relativa à identidade de género, expressão de género e características sexuais é um direito garantido pela Lei n.º38/2018. Neste sentido, é inaceitável dar-se espaço a discursos alarmistas, baseados em informação falsa, e que levem a possíveis situações de discriminação e violência para com populações já marginalizadas e vulneráveis.
Começando pelo título, que afirma "meninas nas escolas podem exigir ser tratadas por meninos". Esta descrição é incorrecta e tem em vista a indignação da população geral e a criação de medo, perante a situação de "exigência" de as pessoas, neste caso crianças, poderem ser tratadas como quem são. As "meninas", ou seja, na realidade, pessoas atribuídas o género feminino à nascença, que pedem para ser tratadas por meninos, são efetivamente meninos. De acordo com a lei portuguesa, as pessoas têm o direito à autodeterminação da identidade de género e mesmo que nem todas as pessoas, por razão de nacionalidade ou neste caso idade, possam proceder à mudança legal do nome e marcador de género, este direito de autodeterminação e da não-discriminação permanece e é para ser respeitado. Assim, as pessoas estão apenas a pedir para ser tratadas como quem são.
Apesar de só pessoas acima dos 18 poderem mudar de nome e marcador de género legalmente, ou acima dos 16 mediante condições adicionais, a lei protege todas as pessoas de discriminação independentemente da idade, sendo inclusive especificado na Lei n.º 38/2018 que a escola tem de garantir o bem-estar e respeito das crianças e jovens, e estando contemplado também no Estatuto do Aluno que é proibida a discriminação com base na identidade de género. O autor afirma que a lei só se refere a pessoas com pelo menos 16 anos de idade, que é informação falsa e incorrecta. Refere ainda a incongruência entre a lei em vigor e a lei agora proposta, que não se verifica. Para além destas questões falsas e incorrectas, o autor usa ainda um discurso alarmista e opiniativo afirmando que "o documento é, obviamente, polémico", que "chocam [a] Oposição" e que "não falta quem aponte a incongruência [da lei]" dando a entender que ele próprio não concorda com a lei e a proposta de lei ao longo do texto.
A redação de notícias, não sendo estas artigos de opinião, deve manter-se isenta, cingir-se a factos verídicos e não contar com a presença de comentários imprudentes e negligentes.
Tanto a lei, como a proposta de alteração discutidas neste artigo têm em vista o respeito da identidade de género das pessoas, a proteção contra a discriminação e a promoção do bem-estar, questões estas que não deviam "chocar" nem ser "polémicas".
O artigo original foi editado para acrescentar ainda citações e comentários de políticos, entre outras figuras, que fazem largas críticas à atualidade da lei e que remetem para a sua inconstitucionalidade, para a ideia da “intromissão do Estado” nos assuntos da família e na vida privada, assim como o “perigo” que a terapia hormonal configura para a saúde física e mental das crianças e que referem que a maioria das crianças se arrepende e “deixaram de ser” trans quando chegam à puberdade. O Estado é ainda acusado de “contrariar a ciência e dispensar a medicina”, sendo afirmado que “não têm vergonha em fazer este tipo de propostas e de promover processos de ‘transição social’, cujo resultado é devastador”. Estes argumentos inflamatórios são parte das citações que são feitas de pessoas de vários partidos, havendo também alguns poucos comentários a favor da lei. No entanto, a partir do ponto em que são veículadas informações gritantemente falsas e incorretas, não sendo posteriormente apresentadas as conclusões da pesquisa imparcial por parte do jornalista, o noticiamento deste tema não segue os princípios do jornalismo e contribui apenas para a alimentação de uma polémica.
Nem a lei atual, nem a proposta de alteração à lei referem a terapia hormonal feita a crianças, nem implicam de qualquer maneira a intromissão do Estado nos assuntos de família. A lei não nega as responsabilidades e papel das pessoas encarregadas de educação na vida das crianças e jovens, garante apenas os direitos e bem-estar das crianças e jovens, sendo inclusive necessário a autorização parental para a mudança de nome e marcador de género de pessoas entre os 16 e os 18 anos. É de realçar também que a Convenção sobre os Direitos da Criança, especificamente o artigo 2.º, defende a proteção da criança contra “todas as formas de discriminação (...) [incluindo as] opiniões expressas ou convicções de seus pais, representantes legais ou outros membros da sua família”, e que neste momento o artigo 69.º da Constituição garante às crianças a proteção contra a discriminação, opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e demais instituições. Assim, o Estado está apenas a seguir a Constituição, assim como as recomendações e padrões internacionais das Nações Unidas e os princípios de Yogyakarta. É de notar também que não existem dados que apoiam a afirmação de que a transição social tem efeitos “devastadores”, muito pelo contrário, quando a pessoa é apoiada neste processo, existem melhorias na sua saúde mental e bem-estar.
Apelamos de novo, e continuamos disponíveis, para capacitar e sensibilizar jornalistas, órgãos de comunicação e de imprensa para as questões de orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais. A imprensa molda a nossa visão do mundo e como tal tem uma responsabilidade inegável de noticiar e informar o público respeitando e não colocando em causa o seu direito de autodeterminação da identidade e expressão de género.
A direção da rede ex aequo,
15 Outubro de 2022